sábado, 12 julho 2025
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TEOLOGIA DO JUBILEU BÍBLICO E A TEOLOGIA DA TERRA

TEOLOGIA DO JUBILEU BÍBLICO E A TEOLOGIA DA TERRA

Dr. Uverland Barros da Silva

Resumo:

Este é um tema vasto e de muitas implicações. Por isso nossa pesquisa se restringe a abordar a luta dos pobres pela posse e cultivo da terra. Isto nos leva a uma delimitação do tema, nos termos que segue: Nosso objetivo principal é fazer uma análise e interpretação exegética e bíblico-teológica para fundamentar uma pastoral da teologia da terra, bem como, da teologia do jubileu bíblico. Nossa investigação tem em vista o significado da terra em duas dimensões: Terra como dom e terra como conflito para os pobres. Trata-se da teologia do Jubileu Bíblico no contexto da Teologia da Terra com implicações em nível de transformação de mentalidade e de atitude. O que isso significa? Acreditamos que tanto a Teologia da Terra, bem como, a teologia do Jubileu bíblico se constituem em uma chave hermenêutica, entre outras, no esforço de superar uma mentalidade dualista e espiritualizante. Isso pode acontecer a partir de uma visão plena do ser humano e da missão integral da Igreja.

 

INTRODUÇÃO

Coloco no horizonte o tema recebido: DEUS CRIOU O MUNDO. O jardim de Deus, terra que produz, gente sem fome. No olhar deste texto, a Terra Prometida é o Jardim de Deus cujos primeiros habitantes foi o casal Abraão e Sara e seus descendentes. Ocorre que esse casal não podia ter filhos, pois a mulher era estéril. Temos aqui um paradoxo existencial sem limites, uma Promessa e uma Aliança, para a criação de um povo cuja mulher-mãe via todo mês seu sangue cair no chão como semente morta. Esta impossibilidade era seu opróbrio, sua vergonha, pois não podia ser mãe como esperava seu marido, pois Ele acreditava na promessa que aquele Deus que não se deixava ver tinha feito. Para resolver esse impasse, os mensageiros de Deus fizeram uma visita àquela tenda prometendo um filho ao varão Abraão. Aí a família estava completa e podia cumprir sua missão de Pai e Mãe do povo de Israel. É sobre esse Povo que nasce dessa Promessa e Aliança, que irão morar no Jardim de Deus, terra de Canaã, plena de leite e mel, que versa essa escrita.

 

 

 

Nesta investigação, o propósito é a análise e interpretação do seguinte tema: TERRA: DOM  E CONFLITO PARA OS POBRES, tendo em vista a perspectiva bíblica e os conflitos sociais.

Propósito e delimitação temática:

Este é um tema vasto e de muitas implicações. Por isso nossa pesquisa enfatiza a luta dos pobres pela posse e cultivo da terra. Isto nos leva a uma delimitação do tema. Em particular, nosso objetivo principal é fazer uma análise e exegese, bíblico-teológico, para compreender uma pastoral fundamentada numa teologia da terra e do jubileu bíblico. Nós entendemos que a expressão “pastoral para os pobres de terra” seria mais aceitável nas igrejas evangélicas/protestantes brasileiras que “pastoral da terra” que está associada à Igreja Católica Romana. Vamos escrever sobre o significado de terra em duas dimensões:

  1. Terra comodom para os pobres.

O tema da terra como dom, como graça, como dádiva, como descanso, como repouso já foi suficientemente investigado. O que pretendemos fazer é uma recopilação monográfica – bibliográfica, tendo por base os seguintes autores e suas respectivas obras: Roy H. May, Walter Brueggemann, Marcelo Barros, José Luís Caravias e outros.

  1. Terra comoconflito para os pobres.

Assumimos a terra como conflito para os pobres no marco da propriedade privada, com seus conflitos, causas, consequências e implicações. Porém, o que nos interessa, de maneira especial, é: desenvolver uma teologia bíblica para os pobres de terra, a partir da Teologia do Jubileu bíblico.  Referimo-nos aqui às contribuições de Sharon H. Ringe, Ross Kinsler e Julián Ruiz Matorell e outros. Estamos falando de uma teologia compacta e relevante que vai reforçar, em muito, o significado da terra como dom para os pobres, o que possibilita pistas pastorais.

Justificação do tema.

Investigaremos este tema pelas seguintes razões: por sua relevância, sua necessidade, urgência e oportunidade, acreditamos, para a nossa realidade eclesial e social. Constatamos uma grande ausência desta temática na teologia no contexto evangélico brasileiro. Porque existe uma fecunda teologia da terra, e queremos explorá-la, desde uma prospectiva protestante, para suprir um enorme vazio aí existente.

A descoberta de uma teologia do JUBILEU BÍBLICO aconteceu por ocasião do Seminário Integrado, oferecido pela Universidad Bíblica Latinoamericana, San José, em seu terceiro bimestre do ano de 1998 no qual participamos como aluno. O conteúdo desta teologia tem grande relevância e aplicabilidade em nosso contexto eclesial, cultural e social. Eis aí a razão da urgência de colocarmos em nossa pauta teológica e pastoral a teologia do jubileu bíblico, com suas profundas implicações em nível de transformação de mentalidade e de atitude.

O que fundamenta esta afirmação? Acreditamos que, tanto a teologia da Terra, como a teologia do Jubileu Bíblico, constituem-se em uma chave hermenêutica, entre outras, no esforço de superar uma mentalidade dualista e espiritualizante. É a partir de uma visão plena do ser humano e da missão integral da Igreja que surgem atitudes históricas de transformação de uma realidade escapista e alienadora de antivida, para uma vida compromissada com a realidade histórica e a gestação de uma consciência crítica, forjando comunidades cristãs de caráter libertador e solidário.

Metodologia a seguir

Esta investigação é um estudo monográfico – bibliográfico, isto é, um estudo no marco teórico da Teologia Latinoamericana, tendo por base material bibliográficos publicadas, tais como: livros, revistas e jornais. O nosso objetivo é realizar uma investigação a partir destas fontes, para mostrar a densidade e relevância dos temas aqui apontados. Além disso, utilizaremos também material inédito, ou seja, tese de licenciatura, de mestrado, monografias e livros escritos ainda não publicados. Este material inédito é quase todo dedicado ao tema do jubileu bíblico, o que configura seu caráter novidadeiro, pelo menos para nós protestantes/evangélicos brasileiros.

Canaã: terra prometida – alternativa cultural

A história da salvação tal como aparece na sagrada escritura desde suas primeiras páginas (Gên 12:1-9; 15: 1-11 e Êx 3: 6-10), contém a promessa de uma terra. As últimas páginas da Bíblia nos oferecem a promessa de uma nova terra prometida. Para as pessoas que vivem num contexto urbano e industrial, a terra parece algo distante e de pouca importância, porém, “o ser humano vem da terra, vive na terra, cresce na terra e, ao fechar os olhos pela última vez, volta ao seio da terra. Em mais de um sentido a terra faz o homem, e cada um é filho da terra”.

Terra na Bíblia tem significado próprio, é um tema central no Antigo Testamento.  É uma das palavras que mais aparecem na Bíblia. Segundo Antonio Lamadrid, a palavra “terra” aparece quase três mil vezes e é superada apenas pela palavra Deus quase dez mil vezes, e a palavra filho quase cinco mil vezes.

Terra contém em si vários sentidos: Terra prometida, terra como espaço de reunião e celebração da Aliança com Yahvé, terra como lugar de raíz, terra como dom, terra como lugar de moradia e repouso, terra como tentação, terra como lugar de criação da vida, terra como herança. Além dos diversos significados aqui apontados e dos dados estatísticos, remetemos o leitor ao que diz R. Rendtorff.

A terra de Israel é um tema central do Antigo Testamento. O tratamento a fundo do mesmo equivaleria a fazer uma exposição completa da religião israelita, ou seja, esboçar toda uma teologia do Antigo Testamento. Pois, não existe nenhum outro tema que contemple áreas tão amplas e que pode servir de fio condutor em suma sistematização teológica global do Antigo Testamento.

A terra prometida na Bíblia é uma expressão usada e justificada. A terra que foi prometida está dentro da mais antiga tradição bíblica, que é a tradição patriarcal yahvista ou abraâmica yahvista. Citaremos alguns textos dessa tradição e da tradição do Êxodo, como paradigmas de nossa reflexão. “A promessa é o elemento mais antigo e também mais constante na fé israelita em redor da terra”. Vide textos referenciados: (Gên. 13: 14-15; cf. 12: 7 e 15: 7,18). (Gên 26: 2-4). (Gên 28: 10-13). (Êxodo 3: 7-8).

As diferentes promessas transmitidas, originalmente, em diferentes santuários vão integrando-se aos poucos. Com a unificação do povo, a promessa repetida em vários altares, se transforma na única e grande promessa, ao mesmo tempo que o prometido é direcionado a um acontecimento histórico posterior. Isto é, a tomada e distribuição da terra por Josué. No contexto do pacto de Yahvé com o povo de Israel, a terra prometida aos patriarcas tem um significado fundamental como garantia de futuro. Como fundadora de esperança, a terra passa a ser sua identidade, sua história; além disso, é uma proposta de vida aberta ao futuro. Toda essa riqueza de significado é garantida pela palavra empenhada por Yahvé com juramento. Isto está claro em Gên 15.7-21.

Terra de Canaã: um dom a ser tomado

Estudaremos o significado da terra de Canaã como um dom a ser tomado e não na perspectiva de uma terra conquistada. Antes, devemos deixar claro quem é o verdadeiro dono da terra, só assim poderemos falar abertamente da terra como dom. Com relação a tal questão, a Bíblia, em alguns textos (Lev.25:23; Deut. .10:14; Nee 9:6 e Sl. 24:1), afirma taxativamente que a terra é de Deus. Os contextos históricos e literários das referências no fundo são diferentes, porém afirmam a mesma coisa. A terra é de Deus e ele a dá a quem deseja e ninguém pode questionar este fato.

Antes de entrar na terra prometida, o povo de Israel, depois de uma longa e arriscada peregrinação, encontra-se às margens do rio Jordão. Julgamos que o Jordão não é apenas um Rio a mais como obstáculo no caminho; tampouco é porto de parada obrigatória. O Rio Jordão é uma frontreira simbólica com vários  significados: é a passagem entre o antes e o depois;  entre o deserto e a terra  que “mana leite e mel”;  entre o prometido  e o que será concretizado; entre a opressão e a liberdade; entre o trabalho forçado e o trabalho livre; entre os sem terra e os com terra; entre o sistema  de dominação individualista faraônico e a alternativa comunitária proposta por Yahvé; entre o politeísmo  dos deuses impotentes e o monoteísmo de Yahvé, o Deus criador dos céus e da terra e tudo mais que existe; entre dom e a posse – domínio.

A parada ao leste do Rio Jordão, significa também tempo de refletir, de repensar toda peregrinação, tempo de criatividade, pois na outra margem do Rio os desafios serão enormes e definitivos para os objetivos deste povo, até então morador de tendas, comedor de maná, bebedor de águas de oásis. Essas coisas passarão à memória de um tempo de aprendizagem coletiva, de formação de uma nova visão religiosa-sócio-cultural de mundo. Isso significa que o Jordão é a fronteira máxima entre o Egito, lugar de saída, e Canaã, lugar de chegada – pois Canaã é definitivamente lugar de chegada. Aproveitando o tema da fronteira, valemo-nos aqui de W. Brueggemann, em seu livro A terra na biblia – dom promessa e desafio, destaca que

O Jordão aparece como fronteira decisiva na Biblia. Ele não está meramente entre o leste e o oeste, se não está carregado de poder simbólico. Ele é a fronteira entre a precariedade do deserto e a confiança de achar-se em casa. A travessia do Jordão é a experiência mais momentosa que poderia acontecer com Israel. A travessia do Jordão representa o momento da transformação mais radical de qualquer pessoa ou grupo histórico, o momento de habilitação ou dotação de terras, o evento decisivo de ser conduzido a casa pela primeira vez.

 

Agora podemos passar ao tema em si, ou seja, a terra de Canaã como dom; que é um dom dado por Yahvé, porém, que necessita ser tomado para seu completo usufruto. Chama-nos a atenção essa curiosa característica do dom de Yahvé dado ao seu povo. Isso implica que todo dom de Deus dado a uma pessoa ou a uma comunidade necessita esforço para ser tomado e vivenciado, tanto ontem quanto hoje. Valemo-nos novamente de W. Brueggemann. Para ele

A terra, para Israel, é um dom. Um dom de Yahvé, que vincula Israel em novos modos com o doador. Israel tinha certeza de que não aceitava a terra nem pelo poder, nem por estratagema, todavia porque Yahvé tinha dito uma palavra e tinha agido para manter a mesma.

 

O resultado das reflexões na fronteira dá conta de ser a terra um Dom da palavra. Israel ia receber a terra, porque Yahvé mantinha firme sua palavra empenhada sob juramento. Leia-se (Deut 6: 10-11)

Nesse sentido, Roy May em seu livro Tierra: Herencia o mercancía?, com elevada pertinência, tem refletido sobre o tema da terra de canaã como dom a ser tomado pelo povo. O autor destaca que:

Deus cria a terra e a entrega como presente, porém, sempre é seu dono; é o mesmo Deus criador e dono da vida. … a terra não é só nem simplesmente para sua distribuição entre os pobres. Sobretudo a terra é um projeto porque é o lugar de trabalho, o espaço para o começo de uma nova história, onde a justiça, a esperança e o bem-estar fazem parte da história.

 

Jubileu bíblico: A tradição bíblica do sábado, do ano sabático e o mandato divino do descanso da terra.

O texto de Êx 23: 12 tem o sentido próprio de “diminuir a exploração de mão-de-obra”, senão vejamos. “Seis dias farás tua obra, mas, ao sétimo dia, descansarás; para que descanse o teu boi e o teu jumento; e para que tome alento o filho da tua serva e o forasteiro”. Leiamos na visão de Haroldo Reimer o que essa legislação propõe e quais suas novidades.

A maior novidade nesta formulação é a especificação da finalidade. Aqui não mais se faz alusão a tempos específicos para interromper o trabalho, mas se indica a finalidade social da lei. Explicitamente mencionam-se duas grandezas distintas: a) primeiramente ordena-se a possibilidade do descanso do boi e do jumento, b) depois agrega-se a disposição de que o filho da escrava e o migrante (ger) também devem desfrutar do benefício deste dia.

Evidencia-se uma preocupação em limitar a exploração da força de trabalho no meio agrícola, uma forma de fazer justiça e de defender o direito dos mais fracos na sociedade. Esta é uma postura subversiva, e tem um grande valor na formação de uma cultura alternativa na sociedade israelita. É uma recusa do trabalho forçado ou trabalho escravo do tempo do Egito, é uma recusa a todo tipo de opressão sobre as pessoas que necessitam trabalhar para os outros para manter a dignidade da vida. Percebemos, então, que o sábado é por excelência um protesto contra o trabalho forçado nas terras do Egito; é um não contra qualquer tipo de escravidão.

O sábado também implica em descanso de Deus. Aparece como ponto culminante do primeiro relato sobre a criação (Gên 1: 1-2: 4a). A iniciativa de Deus é notável, pois cria um tempo de pouso-descanso para si mesmo, o que serve de ponto de partida para toda a teologia e a legislação sobre o descanso para o ser humano, para os animais e para a natureza como um todo. Deus interrompe o trabalho, é um descanso para seu próprio deleite, para desfrutar de um tempo de alegria e de festa, descansar é celebrar a vida.

Jürge Moltmann nos proporciona uma oportuna reflexão sobre esse assunto.

A criação se consuma no sábado. O sábado é a prefiguração do mundo futuro. Por conseguinte, se colocamos a criação à luz do futuro, da glória de Deus, …. Desenvolveremos então uma doutrina sabática da criação. Com isso se indica uma visão panorâmica da criação que se percebe a partir do sábado e somente nele. O sábado é o verdadeiro distintivo da toda a doutrina da criação, que se encontra na Bíblia, na religião judia e na religião cristã…. é curioso observar que a criação foi apresentada quase sempre na tradição teológica da Igreja ocidental só como a obra dos seis dias.  Com frequência não se reparou na evidência do sétimo dia, no sábado. Por isso Deus foi apresentado somente como Deus criador. O Deus que repousa, que festeja, o Deus que se regozija com o resultado de sua criação passou a segundo plano. E, contudo, o sábado é a consumação e a coroa da criação.

 

Na tradição bíblica do Ano Sabático, encontramos a primeira referência no contexto do Código da Aliança. Seis anos semearás a tua terra, e recolherás os seus frutos; porém, no sétimo ano a deixarás descansar e não a cultivarás, para que os pobres do teu povo achem que comer, e do sobejo comam os animais do campo. Assim farás com a tua vinha e com o teu olival (Êx 23: 10-11). O contexto das tradições jubilares do dia do sábado, do ano sabático e do descanso da terra, nos permite olhar com mais densidade seus significados.

O descanso da terra, como mandato bíblico, isto é, como uma legislação social de Yahvé para o povo de Israel, é interpretado da seguinte forma por P. Richard

O texto citado é o mais antigo sobre o ano sabático. A terra é a primeira a gozar o privilégio do descanso igual a Êx 34: 21, sobre o descanso da terra no dia de sábado. O verbo deixar descansar literalmente significa aqui deixar livre.  O ser humano tem o direito de trabalhar a terra e recolher seus frutos, porém Deus também defende o direito da terra de ter o seu descanso e a sua liberdade. Os primeiros favorecidos desta libertação da terra são os pobres do meio do povo (os ebyon). Depois vem os animais do campo. A menção específica à vinha e ao olival contém uma intenção profética, pois estes cultivos eram privilégio dos ricos. Também à esta atividade agrícola de alta produtividade e tecnologia, Deus coloca um limite, para defender os interesses da terra e dos pobres.

Em Lev 25: 1-7 encontramos um texto mais longo sobre este assunto no qual aparecem algumas mudanças que alteram profundamente o significado da legislação anterior. H. Reimer destaca a seguinte perspectiva:

A tradição de um ano de descanso da terra encontra-se também em Lev 25: 1-7, justamente nos versículos que antecedem a proposta do ano jubilar. Há, porém, sensíveis mudanças. Aqui destaca-se o caráter solene. Percebem-se aí as tintas da tradição sacerdotal. O ano de descanso deverá ser legalisticamente observado como um sábado. Em primeiro plano não estão mais a terra e os pobres como favorecidos diretos desta lei, mas o próprio sábado. A terra deverá observar o sábado, por causa da santidade e da solenidade do mesmo. Ninguém poderá plantar nada, e somente se poderá colher o que crescer por conta própria, sem a intervenção humana. Esta versão do ano sabático provém da tradição sacerdotal ligada ao segundo templo, na época do pós exílio.

Parece-nos claro que existe uma ligação deste mandato bíblico do descanso da terra com a teologia da criação em Gên 1-2: 1-3.  Descanso de Deus, descanso das pessoas, dos animais e, por certo, um descanso da terra como mãe produtora de alimento e vida.

Jubileu Bíblico: O mandato divino do perdão das dívidas

Ao lado da libertação dos escravos e escravas, o Deuteronômio legisla sobre o perdão das dívidas. É uma outra maneira de favorecer a vida dos empobrecidos que, por qualquer causa fora de seu alcance, tenham se submetido a dívidas que não podiam pagar. Vide o texto de Deuteronômio. (Deut 15: 1-4)

O objetivo desta legislação é favorecer a vida dos israelitas nas relações econômicas, pois justamente aí surgem as possibilidades de endividamento e de subjugação passando as pessoas à condição servil. O perdão das dívidas é justamente a possibilidade do resgate da dignidade perdida com a condição de servidão.

  1. Richard interpreta este texto da seguinte maneira:

Os vv 1-7 são uma novidade: o perdão das dívidas em cada sete anos. A situação de devedor era um problema sério em meio aos pobres… Deus interfere diretamente nas relações econômicas e coloca um limite para evitar o empobrecimento e a perda da liberdade das pessoas. Mais uma vez a vida humana aparece como mais importante que as leis sobre contratos e dívidas.

Essa legislação, ao tempo que protege o israelita despojado de seus bens, deixa descoberto o estrangeiro. Segundo P. Richard, existe uma diferença entre o migrante pobre (em hebreu ger), e o estrangeiro comerciante (nokri). Deste sim, se deveria cobrar as dívidas.

Ao mesmo tempo, essa legislação socioeconômica visa, entre outras coisas, diminuir os efeitos nefastos, para os empobrecidos, das relações econômicas e, especialmente, como bem expressa: “para que entre ti não haja pobre…” (Deut 15:4).

Uma contribuição ao nosso tema que não pode passar em branco vem do ministério de Jesus Cristo, como seus ensinos, quando ensina aos seus discípulos, e a nós também, a oração do Pai Nosso, seus significados e suas implicações de caráter tanto ético como econômico.

O mandato divino de perdoar as dívidas nos conduz ao Novo Testamento, diretamente ao coração da oração do Pai Nosso (Mt 6: 12): “e perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós temos perdoado aos nossos devedores”. E seu similar em Lucas, que substitui a palavra dívidas por pecados. O texto de Mateus usa as palavras “dívidas” (ta opheilemata) e “devedores” (tois opheiletais) nas duas partes da petição. Lucas, quando usa a palavra “pecados”, possivelmente trata de reconstruir sua versão do Pai Nosso a partir de uma fonte hebreia, ou ainda arameia, da referida petição, usando, para isto, os termos hob/hoba e ainda nesi/massa, o que desemboca num significado tanto ético como financeiro, e significam “dívidas” e/ou “pecados”.

A interpretação que faz Sharon Ringe nos permite compreender que a oração do Pai Nosso tem uma conotação escatológica como outras passagens do Novo Testamento, e que a chegada ao Reino de Deus nos é apresenta com imagens das tradições sabáticas jubilares das Escrituras Sagradas do Antigo Testamento. Ela conclui sua argumentação da seguinte maneira:

Ainda que não seja adequado referir-se ao Pai Nosso como uma oração jubilar no sentido estrito do termo de identificar cada uma das petições com um texto do jubileu bíblico específico, é uma oração jubilar visto que expressa em forma condensada e liturgicamente simbólica imagens comuns às tradições do jubileu das Escrituras hebreias que se encontram em outras partes dos evangelhos sinóticos.

Podemos pensar nas diversas implicações a níveis teológicos e pastorais para os ouvintes de Jesus, de ontem e de hoje. Estamos diante de palavras que significam verdadeiramente boas novas da parte de Deus para as pessoas em todos os recantos deste mundo criado. Primeiro diante de Deus, pois nossa dívida é impagável, e depois diante de todas as pessoas a quem devemos, por qualquer que seja a razão, e não podemos pagar, quer sejam pessoas, instituições, nações. Não há limites para estas boas novas. Pensamos nas pessoas que vivem em situação de indigência e naquelas muitas outras que estão a caminho de viver esse estado de miséria, devido à ordem econômica mundial, que gerou e tem multiplicado a dívida externa.  Para essa multidão de pessoas, essa mensagem tem uma relevância, um sentido de oportunidade e de urgência sem igual na história humana.

Sobre a quinta petição da oração do Pai Nosso, Paulo Lockmann proporciona-nos a seguinte interpretação

Na oração diz-se que Deus nos deve perdoar, como também nós perdoamos a nossos devedores. Estabelece-se um forte compromisso. Deus perdoa nossos pecados, nossos erros, tendo em visto que nos convertemos a ele, temos conhecido sua misericórdia e amor perdoador, somos assim constrangidos a mesma maneira de perdoar. Porém, que temos que perdoar? Tudo, principalmente as dívidas que impedem as pessoas de viver, e as transformam em nossas escravas.

Esta é a situação concreta dos povos do Terceiro Mundo, a chamada dívida externa que tem convertido a milhões de trabalhadores/as em verdadeiros escravos/as. Temos que produzir dólares com nosso sangue e a dor de nossos trabalhadores/as para pagar uma dívida da qual nem vimos o dinheiro, e além disso é impagável, pois os juros são o meio pelo qual a dívida continua sendo cobrada, é uma forma de manter a dominação. Hoje, ao orar o Pai Nosso, não devemos pensar somente no alívio que necessitamos para nossa consciência culpada, senão também nas formas de aliviar a dor imposta aos trabalhadores devido a dívida externa, que não dispõem das mínimas condições de saúde, educação, alimentação para eles/elas e suas famílias. Uma dívida assim tem que ser perdoada.

Neste caso, fazer a vontade de Deus é, entre outras coisas, declarar o ano do Jubileu, ou seja, é cancelar as dívidas. É necessário que as pessoas do Terceiro Mundo venham a gozar do perdão das dívidas, deste modo será feita a vontade de Deus tanto no céu como na terra.

Já fizemos, também, referência a Deut 15: 4ª, “para que entre ti não haja pobre…”. Por justiça queremos nos referir também a Deut 15: 11a., “pois nunca deixará de haver pobre na terra…”. A primeira é a vontade de Yahvé, a segunda é o resultado da atitude humana. Por isso, devemos obedecer a legislação social, e atender às necessidades dos pobres da terra, pois esta também é a expressa vontade de Deus. Deut 15: 11b, “por isso eu te ordeno: livremente abrirás a tua mão para o teu irmão, para o necessitado, para o pobre da terra”. Hoje diríamos para o empobrecido, para as massas sobrantes da terra. Nosso propósito é manter uma tensão teológica entre essas duas referências impedindo assim as fugas espiritualizantes ou moralistas que aparecem, quando se trata desta questão.

Completamos nossa argumentação sobre o mandato divino de que as dívidas devem ser perdoadas, com a análise sobre o tema da dívida na mensagem cristã escrita por Franz Hinkelammert. De acordo com o autor,

(…) Por isso, nesta teologia da reconciliação do homem com Deus temos ao mesmo tempo uma reconciliação de Deus consigo mesmo. Deus volta a ter uma liberdade perdida quando o homem volta a ser livre. Liberdade e cobrança de dívidas, liberdade e lei, liberdade e dinheiro, liberdade e Mammon se contradizem. Esta é a mensagem de liberdade de Jesus. Cristão é perdoar as dívidas. Cristão é ser livre. E Deus é um cristão. Do ponto de vista da autoridade e da lei, esta é uma mensagem sumamente aborrecida, e toda a tradição o sentiu assim. É, ao mesmo tampo, a origem e o além de todas as utopias modernas, desde a liberal até a anarquista. Relativiza qualquer ordem institucional porque qualquer ordem institucional baseia-se na cobrança da dívida e na exigência do cumprimento. A cobrança da dívida é injusta; o justo é perdoar a dívida. É injusta porque, enquanto a dívida é impagável, cria dependência entre os homens das quais não se tem saída. A dívida impagável esmaga a vida do devedor. Traz a morte. Por isso é injusta. E por isso também é injusto pagar a dívida.

 

Quando tratamos do perdão da dívida nos confrontamos diretamente com a mentalidade burguesa capitalista que não tem nenhum interesse de enfrentar tal assunto, preferindo referir-se ao perdão dos pecados e colocando o assunto no âmbito privado da religião, descaracterizando toda sua ênfase socioeconômica.

 

Uma prospectiva diferente do Jubileu bíblico, a partir da casa de Rute – Noemi e da teologia de Oséias

Iniciamos tentando compreender as ambiguidades da palavra casa, tanto na Bíblia como na realidade circundante. Na Bíblia, tal palavra aparece com diversos significados: “significa a casa agrícola de uma família, como a de Gideão (Jz 6: 15). Uma casa rica como a de Nabal em I Sam 25: 2-3. Casa de uma prostituta, como a de Raabe em Jericó (Js 2: 1). Pode significar o palácio real (I Rs 7: 1-2)”. Com relação a esse tema, Francisco Orofino proporciona-nos novas perspectivas. Com relação à realidade, transcreveremos dois exemplos:

José e Filomena vieram do sertão da Bahia para uma cidade satélite de Brasília. Lá começaram a construir um barraco com os restos de papelão e de madeira compensada que José conseguia catar na rua. Neste barraco, de apenas um cômodo, José e Filomena davam abrigo para seus cinco filhos e dois cachorros. As crianças, depois de passar o dia inteiro na rua, voltavam para o barraco dizendo para as outras crianças de rua: estamos indo para casa! No bairro dos jardins, em São Paulo, um banqueiro famoso está construindo um imenso prédio, com 38 cômodos, entre eles, cinco suítes, dez quartos, sala de estar com bar anexo, sauna, sala de jogos e um heliporto no telhado. Quando pega o helicóptero depois de um dia de trabalho, o banqueiro diz: estou indo para casa!

Não pretendemos esgotar o assunto da casa, nosso horizonte diz respeito aos laços de solidariedade que podem unir os membros de uma casa, gestando resistência, sobrevivência, ou ainda esforço para sua reconstrução.

Por falar em reconstrução da casa, o grande exemplo nos vem, na perspectiva que estamos tratando, do livro de Rute: “através deste livro vemos que, no período do pós-exílio, a casa passa a ser um espaço mítico, um lugar igualitário por excelência, o ideal de uma convivência perfeita”.

Na cultura israelita, a casa era a base da unidade familiar, o espaço vital, lugar de produção e reprodução da vida. Espaço de identidade e tranquilidade, porém, para que esse ambiente fosse verdadeiro dependia de três fatores, que, segundo Orofino, são:

A descendência. A fertilidade humana era a garantia de um futuro para a casa (Gn 15: 3; Sl 127: 3-5).  Um homem sem descendência veria seu nome desaparecer. … A maldição caia sobre a mulher estéril (Gn 30: 1), já que numa sociedade patriarcal o homem sem filhos nada valia.

O rendimento agrícola.  A subsistência da casa era fruto do trabalho de seus habitantes dentro de uma economia agropecuária… De qualquer maneira a produção da casa, agrícola ou pastoril, estava voltada basicamente para o sustento de seus membros. A seca prolongada poderia colocar as estruturas da casa no chão (Dt 28: 24: Jer 14: 2-6). Mas o grande perigo aqui eram as injustiças do sistema de empréstimos (Ne 5: 1-5), os tributos exigidos pelo estado (Ne 5: 4).

A paz sócio-política. Para que essa casa pudesse viver e sobreviver eram necessárias garantias contra ameaças externas, fruto de decisões sociais e políticas que muitas vezes não estavam dentro dos limites do poder de seus moradores. O Estado, nas suas necessidades de defesa, poderia desestruturar uma casa através de taxas e impostos, de requisições de homens e animais, desequilibrando sua produção e consumo.

Estas três realidades indicadas acima permitem entender melhor as bênçãos para uma casa. As bênçãos aparecem por trás de imagens ideais, repassando aos membros de uma casa tranquilidade e estabilidade. As ideias de “descendência, saúde, fertilidade, colheitas abundantes, chuvas, comida, rebanho, paz. A reunião de todos estes elementos é o que a Bíblia chama de shalôm (paz)”. O fato é que o conceito de shalôm nos permite perceber a casa como espaço litúrgico – celebrativo. As diversas narrativas sobre a festa da páscoa retratam bem um ambiente familiar celebrativo em torno de Yahvé.

Temos nas últimas páginas refletido de maneira significativa sobre o Jubileu Bíblico a partir de Lev 25; Is 61: 1-3; Lc 4: 18-19,21. Porém, um outro livro que nos ajuda muito a entender e refletir sobre o Jubileu na visão dos pobres e, especialmente na visão de duas mulheres viúvas, uma delas estrangeira, é o livro de Rute. Elas estavam envolvidas na difícil tarefa de “reconstruir a casa. São duas mulheres que vivem na pobreza e no abandono. Não são parentes de sangue nem são da mesma raça. O único vínculo que as une é um dos mais difíceis dentro de casa: são sogra e nora”.

O que motiva essa união? Quais são as causas de caminharem juntas no meio de tanta pobreza? A resposta nos vem através de um pacto de solidariedade mútua entre elas, e isto é expresso por uma palavra que usamos muito, porém, de difícil tradução: hesed (Rt 1: 8; 2: 20: 3: 10). Esta é uma das mensagens do livro. Precisamos entender realmente o que significa hesed para descobrirmos qual a função da casa dentro do jubileu.

É neste ponto que Oséias começa a participar em nossa análise, pois lemos no cap. 6: 6 “quero hesed e não sacrifícios. Conhecimento de Deus e não holocausto”. Já foi dito que hesed é de difícil tradução. Num esforço de entendê-la melhor, citemos as palavras do autor em pauta.

Geralmente as Bíblias traduzem-na por fidelidade, misericórdia, amor, amizade, Hesed é tudo isso e mais do que isto. Não se pode captar todo o seu significado em apenas uma palavra. Hesed é um sentimento profundo que transborda em solidariedade recíproca, amor fiel, amizade profunda, bondade gratuita, afetividade partilhada, disponibilidade total. Este sentimento une as pessoas num empreendimento comum, assim como uniu Rute e Noemi numa hora bastante difícil para as duas. Quem recebe hesed sente-se acolhido, protegido, livre de perturbações, da solidão, da angústia, do abandono.

A palavra de Oséias é uma denúncia contra um culto cheio de sacrifícios, quando o que Yahvé exige é um relacionamento justo e solidário; que o povo cultive uma ética forjadora de relações humanas justas e fraternas, em que o pobre é amparado, acolhido e protegido das forças opressoras.

Jesus, ao proclamar o ano da graça do Senhor em Lc 4: 18-19, está ratificando o Jubileu. Nesta perspectiva, entre outras coisas, está dando sequência à teologia de Oséias. Tendo em vista que Jubileu é “restabelecer o direito dos pobres, acolher os excluídos, reintegrando-os na casa. A casa de Simão (Mc 1: 29), a casa de Levi (Mc 2: 15) ou sua própria casa (Mc 2: 1-2)”. Nestas casas, o jubileu aconteceu através dos milagres, do acolhimento, da libertação, dos ensinos. Vida em forma de liberdade.

Porém, na parábola do bom samaritano (Luc 10:25-37) aparece uma conexão da teologia de Oséias com as palavras e os atos de Jesus. No contexto desta parábola, Jesus se volta para quem o interrogou e lhe pergunta: “Na tua opinião quem foi o próximo daquele que tinha caído? Aquele que usou de misericórdia hesed para com o caído. Pois então vai e faz a mesma coisa”.

Para Jesus, o próximo é o empobrecido, a quem devemos ajudar com a hesed.  A práxis da hesed, portanto, faz parte integral da teologia jubilar, isto é, da economia e da espiritualidade sabático-jubilar sobre a qual estamos refletindo nestas páginas. A hesed pode ser praticada a partir de nossa casa, lugar privilegiado para a prática libertadora da hesed, além do que pode e deve ser praticada em todos os lugares disponíveis, quer sejam litúrgicos ou não.

 

Jubileu Bíblico: proclamação do ano da graça do Senhor em Is 61: 1-3; Lc 4: 18-19 e 21

Nos itens anteriores refletimos cada texto per si. Porém, neste procederemos de maneira diferente, tendo em vista que existe uma simbiose de significados nos textos indicados. Para efeito de nossa reflexão, podemos agrupá-los numa só interpretação ou comentário. Primeiro citaremos os textos, acrescentando ao clássico texto de Is 61: 1-2, o v. 3 e o texto de Lc 4: 18-19, o v. 21. Ampliamos assim os textos jubilares não apenas pela quantidade de versos, mas pelo sentido que os mesmos propõem e nos ajudam na nossa tarefa interpretativa.

No texto de Isaías, constatamos a presença do termo <deror> (v 1). É um termo clássico usado para a libertação, alforria de escravos e escravas – aparece em Êx 21: 2; Deut 15: 12 e Jer 34: 10. Em Lc 4: 18 encontramos por duas vezes a palavra <aphesis> que significa libertação, liberdade, na qual Septuaginta traduz os termos técnicos do hebraico que aparecem na tradição sabático-jubilar tais como: <deror, shemittah e yobel>.

Outra observação necessária diz respeito à referência de Lucas, pois o que temos aí é um texto misto. A referência aos cegos é uma contribuição da Septuaginta, que difere do texto massorético neste ponto; a frase sobre os oprimidos nos vem de Is 58:6 um outro capítulo sabático-jubilar, em que se menciona pela segunda vez a libertação. Assim, aspectos centrais da teologia do segundo Isaías são revestidos de uma tonalidade nova e plena de vigor.

Interessa-nos particularmente refletir sobre o ano da graça e suas implicações sabáticos – jubilares. Iniciaremos fazendo referência a Luc 4: 21. Segundo a interpretação de José Pérez Escobar.

Hoje se cumpriu as Escrituras que acabais de ouvir. Esta declaração de Jesus valora o ideal isaiano, isto é, a utopia de uma sociedade sem pobreza nem opressão, convertendo-o em profecia de maneira definitiva e anunciando seu cumprimento:  o tempo de uma intervenção salvífica de Deus em favor do pobre e do oprimido deixa de ser um atrativo e revolucionário ideal do passado, para converter-se numa realidade efetiva e atuante na história.

Anunciar o ano aceitável do Senhor como Lucas o faz é ao mesmo tempo um resgate e uma atualização da mensagem que aparece na tradição dos mandatos divinos sabáticos – jubilares. É uma contextualização profética – messiânica das boas notícias do Reino de Deus aos empobrecidos. Realidade que os tornava gente insignificante e até impura na perspectiva da religião oficial judaica, daí a opressão sofrida possuir também um caráter religioso – litúrgico. Lc 7: 22 exemplifica bem este estado de impureza de vários grupos sociais frente à religião judaica. São eles: os cegos, os paralíticos, os leprosos, os surdos, os mortos. São pessoas que vivem num estado de pobreza e, ainda por cima, são vítimas de uma opressão religiosa – econômica estabelecida.

Ross Kinsler apresenta uma oportuna interpretação sobre os quatro grupos de pessoas apontadas por Jesus em sua leitura na sinagoga de Nazaré. Citemos este olhar sobre Lc 4: 18.

Anunciar boas novas aos pobres não significa providenciar-lhes um lugar no céu depois da morte. Significa mudar a realidade básica sócio – econômica e espiritual de camponeses endividados, gente sem-terra, e trabalhadores sem emprego ou escravizados neste mundo. Proclamar libertação aos cativos refere-se provavelmente aos endividados presos, porque não dispunham de recursos financeiros para pagar suas dívidas. Vista aos cegos possuía uma perspectiva escatológica, e pode ampliar alcançando todas as necessidades de saúde. Colocar em liberdade os cativos podemos interpretar não somente em termos do mandato sabático-jubilar de libertar os escravos israelitas, senão também no sentido mais amplo de re – criar uma realidade social – econômica na qual as condições que geram as dívidas e perdas de terras sejam transformadas. Seguindo essa linha de raciocínio podemos sugerir que o ano aceitável do Senhor que Jesus proclamou como sendo a vinda do reino de Deus já não se restringia apenas a um ano em sete ou um ano depois de quarenta e nove, senão uma nova idade de liberdade para todo o povo de Deus de toda classe de opressão.

Num esforço de ampliar os significados da versão lucana do texto isaiano, valemo-nos da interpretação feita por Ross Kinsler, que nos permite vislumbrar toda uma realidade de opressão existente como pano de fundo histórico.

A leitura que Lucas faz de Is 62: 1-2 é diferente da que aparece no texto hebreu e na tradução correspondente grega dos LXX. No texto lucano se elimina a frase original e o dia da vingança do nosso Deus no seu lugar aparece a frase de Is 58: 6d:  para pôr em liberdade os oprimidos. A inserção abrupta para pôr em liberdade os oprimidos colabora para se compreender melhor a atividade exercida por Jesus e a condição em que se encontram seus destinatários. A evangelização promovida por Jesus será uma autêntica libertação de todo tipo de trapaça, coações e situações injustas. Por outro lado, os destinatários desta intervenção libertadora não se encontram na pobreza e na marginalização porque os merece, senão porque são vítimas da opressão organizada. A opressão aparece aí como a causa determinante de todo tipo de necessidade e pobreza: existem vontades que impedem que o pobre, o endividado, o cego e os oprimidos sejam restabelecidos em sua dignidade.

 

Julgando que estejamos bem no centro da atuação profética – Jesuânica –, a atividade de Jesus possui um caráter profético, não de anúncio ou denúncia, mas de realização, com seus diversos sentidos e sua multiforme implicação no cotidiano da comunidade cristã, em relação ao ensino do ano da graça do Senhor como práxis da teologia que recebemos através da economia e da espiritualidade sabático jubilar. Na dinâmica da solidariedade sabático-jubilar, Jesus se coloca ao lado dos pobres, como sendo um deles, e contra qualquer tipo de pobreza, dando-nos o exemplo de como devemos viver nossa vocação cristã.

A teologia profética – Jesuânica, que coloca à luz a fecunda tradição sabático-jubilar, é uma particularização explícita da mensagem das boas novas do reino de Deus aos oprimidos – empobrecidos de todos os tempos. Estamos aqui percorrendo o estreito – largo caminho da “opção preferencial aos pobres” ou, dito de outra maneira, <o amor preferencial de Deus aos pobres>.

Considerações finais.

Retomamos o assunto desta pesquisa – DEUS CRIOU O MUNDO. Jardim de Deus. Que produz. Gente sem fome. Neste texto, o jardim de Deus se plasmou na terra prometida e conquistada pelos descendentes de Abraão e Sara. Lá os peregrinos do deserto, na liderança, primeiro de Moisés, depois de Josué, encontraram terra e espaço para suas famílias, para produzirem com abundância. Famílias estabelecidas, povo formado, nação construída. Nesse jardim manava leite e mel. Uma liberdade poética do autor. Isto quer dizer que tudo o que plantavam nascia e crescia, seus rebanhos reproduziam a três por um, tempo de fartura e expansão.

No tempo da graça de nosso Senhor, mestre e Salvador Jesus Cristo, a terra prometida passa a ser a Igreja Primitiva, uma realidade criada pelo sangue do cordeiro de Deus, que ao iniciar sua missão afirmou: fui enviado para apregoar, proclamar o ANO ACEITÁVEL DO SENHOR (Is. 61: 1-3 e Lucas 4: 18 e 19). Missão e consumação da tradição sabático jubilar.

A Igreja Primitiva nas suas lutas e esperanças com base na hesed, entre outros valores do Reino de Deus, virou vida na comunidade. Misericórdia estendida, esparramada, espalhada, lugar de acolhimento, conforto, reinvenção da vida, reconstrução da dignidade integral, outrora perdida, para os mais pobres da comunidade em si, e do seu entorno. Jardim de Deus, terra que produz, a vida e suas vivências.

Cada Igreja seguidora de Jesus Cristo aqui, ali, e alhures é um jardim de Deus, que produz vida e vida em abundância. Por menor ou maior que seja, a Igreja é semeadora de paz, perdão, reconciliação, amor, justiça, etc. Esses valores aparecem de forma plural na atividade da Diaconia, em que se exerce com um amor proativo e sustentado pelo Espírito Santo. Na Antiga Aliança, Deus se faz presente agindo a favor dos pobres, empobrecidos do meio do seu povo, as viúvas que não têm marido, os órfãos que não têm pai, e os estrangeiros que não têm pátria. Essas são as três minorias empobrecidas no meio do povo de Israel, por isso Deus em sua infinita graça, criou no meio do seu povo uma legislação para amparar e defender os mais pequenos da terra, tudo isso dentro da Tradição sabático jubilar, que começa com o dia do Sábado. O ano Sabático e o Jubileu Bíblico.

Onde tem uma família, em qualquer parte do planeta terra, que adora e serve a Deus, em suas orações individuais implora e suplica o perdão de Deus e sua proteção e faz isso em nome de Jesus Cristo, ali também é um jardim de Deus, onde se produz para suprir a fome da família e estende sua mão e sua misericórdia para alguém que bate à sua porta, seja qual for a hora do dia e da noite.

Eis que um brado em alto e bom som se ouviu vindo do apocalipse, anunciando que o Deus Soberano Senhor Criador dos Céus e da Terra já criou o NOVO CÉU E A NOVA TERRA. A terra prometida a nosso País na Fé, era terra peregrina, de peregrinos pelas tendas dos verdes campos do Senhor. Com a missão de viver o amor, a graça, o perdão, a esperança, a paz, a liberdade, a justiça e a misericórdia. Era terra de passagem, terra de liberdade e dignidade. Agora a NOVA TERRA feita por Deus é terra definitiva, lá não teremos mais leite e mel. Apoc: 21: 1, 3, 18, 21 e 22

Vi o novo céu e a nova terra. … Eis o tabernáculo de Deus com os homens, Deus habitará com eles. Eles serão povo de Deus, e Deus mesmo estará com eles… Vi também a cidade santa, a nova Jerusalém, que descia do céu, da parte de Deus… A estrutura da muralha é de jaspe; também a cidade é de ouro puro… A praça da cidade é de ouro puro, como vidro transparente. Nela não vi santuário, porque o santuário é o Senhor, o Deus todo poderoso, e o Cordeiro.

 

Vivemos de fé em fé, de terra peregrina para a terra sobrenatural e eterna. Lá viveremos da adoração, do eterno louvor, dos cânticos celestiais e da glorificação ao Santo. Santo. Exaltado seja Deus.

 

 

Referências Bibliográficas

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Brasília – DF, 20 de junho da 2023

Rev. Prof. Dr. Uverland Barros da Silva

PS: o artigo em pauta é um recorte da minha tese de doutorado publicado primeiro na Europa depois no Brasil cujo tema é: TERRA: DOM E CONFLITO PARA OS POBRES. A Teologia do Jubileu Bíblico e a luta dos pobres pela vida.

 

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